Em alguns casos, beneficiários que já assinaram o contrato da nova moradia aguardam há dois meses pela mudança definitiva
Impasses envolvendo imobiliárias, vendedores de imóveis e beneficiários do Compra Assistida têm atrasado a mudança de famílias atingidas pela enchente para suas casas definitivas. Parte das pessoas que já tiveram seu imóvel comprado pela Caixa Econômica Federal e assinaram o contrato ainda não recebeu as chaves.
Entre os fatores que impedem a mudança imediata estão a presença de inquilinos no imóvel e a conduta de proprietários e corretores de não entregarem as chaves antes do pagamento, o que causa controvérsia e, no entendimento do Ministério Público Federal, contraria o contrato da Caixa.
O programa criado pelo governo federal prevê uma série de etapas, desde o cadastramento das famílias aptas a receber uma nova moradia, passando pela escolha de um imóvel de até R$ 200 mil até a assinatura do contrato de compra e venda. Até esta terça-feira (8), 3.749 famílias cadastradas já estavam nessa situação.
No entanto, não é possível saber quantos estão de fato morando no novo lar, uma vez que a Caixa reconhece a assinatura como a última etapa do processo. Depois disso, cabe ao vendedor, e à imobiliária ou corretor contratada por ele, fazer a entrega das chaves, o que caracteriza a posse do imóvel.
É em meio a essa indefinição que vivem alguns moradores de Porto Alegre, principalmente na região das Ilhas e do bairro Sarandi, na Zona Norte.
A dona de casa Sandra Beatriz Faleiro, 54 anos, saiu da Ilha da Pintada em meio à enchente, há mais de um ano. Desde então, vive de aluguel em uma residência no bairro Jardim Carvalho, na zona leste de Porto Alegre. O contrato de compra e venda foi assinado há dois meses. Mas a sua data de ida para o novo apartamento é incerta. O local que ela e sua família escolheram estava alugado.
— O dia que eu fui assinar, não me deram as chaves, porque ela (inquilina) ainda estava lá — conta.
A família tem buscado resolver a situação com a imobiliária, pois tecnicamente o imóvel já pertence a ela. Enquanto isso, Sandra diz enfrentar problemas financeiros para pagar o aluguel.
Eu estou ansiosa. Não fui sorteada no aluguel social. E estou na espera. O dinheiro não dá, porque o salário é só do meu marido e estou muito apertada, compro remédio também. Tudo está encaixotado, além disso, a casa é muito fria.
O impasse de Sandra é amparado pela Lei do Inquilinato. Ela define que a pessoa que está alugando um imóvel que foi posteriormente colocado à venda, tem até 90 dias para deixar a moradia após a notificação do morador. A regra se sobrepõe à assinatura do contrato.
— Se a pessoa assinou o contrato de compra mas ainda resta, por exemplo, 20 dias, para que o inquilino cumpra o prazo, é preciso esperar. Você não pode sobrepor a uma outra regra existente. Mas se ele (inquilino) não sai, tem que entrar com uma ação de despejo. E e esse procedimento todo me parece um tanto incompatível com esse programa emergencial — explica o advogado imobiliário Fernando Smith.
Imobiliárias exigem pagamento antes da posse
Há ainda outro obstáculo que está postergando a posse dos imóveis para alguns beneficiários. Famílias alegam que, após a assinatura, o antigo proprietário e o agente imobiliário, que atua como intermediário, estão fazendo a entrega apenas após o pagamento da Caixa.
No entendimento da Caixa e do Ministério Público Federal, a medida contraria o contrato feito pelo banco. Já que, segundo eles, há a determinação de entrega imediata das chaves após a assinatura.
O documento, ao qual Zero Hora teve acesso, determina a posse do imóvel: “*desembaraçado de quaisquer ônus”(leia cláusula abaixo), ou seja: sem nenhum tipo de impedimento. O termo imediato não está colocado de forma explícita.
Por lei, a Caixa pode realizar o pagamento em até sete dias após o contrato ser regularizado no cartório, processo que leva 30 dias. Essa etapa ocorre após o novo morador ter feito o registro de posse. Uma reunião, mediada pelo MPF ocorrida na última quarta-feira (2), tratou do tema. Na visão do órgão, o vendedor necessita entregar a casa sem receber o dinheiro.
— O contrato antes é levado ao registro de imóveis e tem um tempo então até que ele ocorra. Só que é muito importante ressaltar que quem faz o pagamento dos imóveis é a Caixa Econômica Federal, ou seja, uma venda 100% segura para o vendedor — explica a procuradora Ana Paula Carvalho de Medeiros.
Reunião entre entidades
O encontro contou com a presença da Caixa, prefeitura de Porto Alegre e o Conselho Regional de Corretores de Imóvel do Rio Grande do Sul (Creci-RS). Durante a reunião, o órgão se comprometeu a orientar os corretores a cumprir o contrato da Caixa.
Porém, o presidente do Creci-RS, Márcio Bins Ely, não vê irregularidade na prática. Na sua interpretação, o contrato é claro no que diz respeito à espera pelo pagamento.
— A gente ponderou, que o próprio artigo primeiro (do contrato) prevê que, dando a quitação, o comprador é emitido na posse. Então, pelo nosso entendimento, mediante o pagamento, quando a Caixa liberar o pagamento, o proprietário do imóvel que está vendendo, tem que entregar a chave — afirma.
Ainda assim, o conselho se comprometeu a orientar a categoria a ler o contrato da Caixa ao intermediar as negociações. Já a procuradora Ana Paula deve solicitar ao banco federal que deixe mais claro o que consta no contrato em relação à entrega imediata das chaves.
Contratos paralelos
Famílias ouvidas pela reportagem relatam que, no processo de compra, receberam contatos das imobiliárias contratadas pelos vendedores para assinar um contrato próprio de compra e venda.
Nesse documento há uma cláusula exigindo a ocupação do imóvel apenas após o recebimento do dinheiro na venda, indo na direção contrária do que determina o programa.
A administradora Fernanda Farias, 43 anos, que atua como representante dos moradores da Ilha da Pintada no Compra Assistida, está pagando aluguel em Canoas, quase dois meses depois de ter a compra contratada. Nesse caso, o vendedor utilizou a imobiliária QuintoAndar para intermediar a venda.
Muita gente acabou assinando aquilo. Eu inclusive assinei meu contrato sem ler, a corretora estava me pressionando. Assim como muitas pessoas que que possuem baixa instrução leram e não entenderam. Eu, agora, lendo aquilo, é óbvio que jamais ia assinar, mas infelizmente agi de impulso.
Autoridades e especialistas garantem que esses contratos não possuem efeito de compra e venda no contexto do Compra Assistida, e que o acordo da Caixa prevalece.
O que diz a Caixa Econômica Federal
A reportagem entrou em contato e aguarda um posicionamento. O espaço segue aberto para manifestação.
O que diz o QuintoAndar
O QuintoAndar informa que cumpre integralmente a legislação federal sobre transações imobiliárias, o que contempla todos os procedimentos legais junto à Caixa Econômica Federal. Neste sentido, em casos de imóveis vendidos pelo QuintoAndar com locação vigente, a empresa oferece suporte às partes e orienta o cumprimento rigoroso da Lei do Inquilinato, que rege soberanamente as relações de aluguel em todo o país, e garante ao inquilino até 90 dias para desocupação do imóvel após o registro da venda deste.
A empresa mantém canais de atendimento e equipes especializadas para apoiar clientes em todas as etapas da compra e venda de imóveis.
*Cláusula contrato da Caixa
O(s) VENDEDOR(ES) proprietário(s) e possuidor(es) do imóvel descrito na letra “B”, livre e desembaraçado de quaisquer ônus, o vende(m) a(os) BENEFICIÁRIO(S) pelo preço descrito na letra “C”, dando quitação, lhe(s) transmitindo a posse, domínio, direito e ação sobre o imóvel vendido, aceitando por si, seus herdeiros e sucessores esta venda e compra e respondendo pela evicção de direito.
Fonte: GZH – Foto:Guilherme Milman