Produtos frequentemente chamam a atenção por serem mais baratos e representam riscos nutricionais
Eles ocupam praticamente o mesmo espaço e têm embalagens quase idênticas às originais, mas possuem preço e composição nutricional bem diferentes. São os “alimentos fake”, como popularmente ficaram conhecidos, que passaram a ser cada vez mais consumidos pela população brasileira ao longo das últimas décadas.
Legalmente, os “fakes” podem ser vendidos se estiverem rotulados de forma correta, com termos como “à base de”, “tipo” ou “sabor”. Mas a diferença, muitas vezes, está em letras pequenas, enquanto o layout das embalagens replica o dos produtos tradicionais.
A estratégia atende à demanda do mercado, mas provoca confusão e preocupa especialistas em nutrição e segurança alimentar. Muitas vezes, por desconhecimento, os “alimentos fake” acabam adquiridos pelos consumidores que buscam por alternativas mais econômicas.
A alta nos preços do café, por exemplo, fez levantar nos últimos meses a polêmica sobre o “café fake”, ou “cafake”. O produto, embora tenha embalagem que imita marcas famosas, não tem o grão em sua composição. Discretamente, a informação de que se trata de “bebida sabor café” é inserida no rótulo.
Embora vários produtos não sejam, necessariamente, uma novidade, o alcance aumentou. Em alguns supermercados de Porto Alegre, versões genéricas são colocadas lado a lado com os alimentos originais. A estratégia de disposição sugere semelhança e aproveita o preço mais baixo como principal atrativo, mas confunde os consumidores.
Os fabricantes alegam que esses produtos seguem a legislação e oferecem uma alternativa viável. Para especialistas, no entanto, o risco está na desinformação. A falta de conhecimento sobre rotulagem e ingredientes pode levar a escolhas com baixo valor nutricional. Em muitos casos, essas alternativas são mais calóricas, têm excesso de sódio, gordura hidrogenada e aditivos artificiais.
Em Porto Alegre, um atacado visitado pelo Correio do Povo exibia lado a lado dois tipos de óleo: o azeite extravirgem mais barato, por R$ 42,19, e um “óleo composto com azeite”, por R$ 15,90. A diferença de preço ultrapassava 60%, embora a identidade visual pudesse confundir os consumidores que não estivessem extremamente atentos.
O mesmo ocorreu com leite em pó. Um pacote de 750 gramas de leite de uma marca reconhecida custava R$ 44,90, enquanto um composto lácteo da mesma marca, com fibras em pó e 975 gramas, saía por R$ 63,90. Apesar do peso maior, o produto mais caro não é leite em pó, e sim uma mistura com soro e outros ingredientes.
Entre os laticínios, o contraste é ainda mais visível em outro supermercado. Uma bandeja de iogurte integral de 1,15 litro variava entre R$ 12,90 e R$ 14,99. A bebida láctea fermentada, com 1,25 litro, custava até R$ 5,69, menos da metade do valor.
Nos doces, a diferença também chama atenção. Leite condensado tradicional era vendido por R$ 5,99. Ao lado, a mistura láctea da mesma marca, com rótulo que tinha como única diferença a tonalidade da cor azul, custava R$ 4,49. A fórmula, no entanto, levava ingredientes diferentes.
Em outro exemplo, o “achocolatado fake”, em embalagem de 1 quilo, custava R$ 10,90. O produto original, de uma marca famosa, com 730 gramas, chegava a R$ 20,98. A substituição de cacau por aromatizantes artificiais explica parte da diferença.
Mesmo nas promoções, a discrepância persiste. A caixinha de creme de leite de verdade era vendido por R$ 2,69. Um produto ao lado, com mesmo tipo de embalagem e feito com mistura de leite, soro de leite, creme de leite e gordura vegetal, saía por R$ 2,49. A economia de R$ 0,20 é insignificante frente à mudança completa na composição.
As bebidas à base de café foram tema de diversos alertas em todo o país. A substituição do pó por misturas que contém pouco ou nenhum grão de café puro provocou a divulgação de uma nota oficial da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), alertando para a ilegalidade da prática.
Conforme a entidade, a legislação proíbe, de forma expressa, com punição de multa e apreensão, a oferta direta ao consumidor de café misturado com resíduos agrícolas, matérias estranhas e impurezas como cascas, palha, folhas, paus ou qualquer parte da planta, exceto a semente do café.
A associação destaca, ainda, que o crescimento do surgimento de empresas “clandestinas” ocorre pela valorização do preço da saca de café no mercado. “Com a intenção de burlar a legislação e enganar o consumidor, algumas empresas têm tentado enquadrar a mistura intencional de impurezas no café em outras categorias de alimentos, mantendo-se a identidade visual parecida com o café verdadeiro. Trata-se do ‘Café Fake / CaFake’, ou seja, produto que parece café, mas não é”, diz a ABIC.
Para a associação, o denominado “pó para preparo de bebida tipo ou sabor café” pode ludibriar o consumidor e não é recomendado para a população, por representar risco à saúde. Aos consumidores, a ABIC recomenda que sejam adquiridos apenas cafés que tenham o selo de pureza e qualidade da própria Associação Brasileira da Indústria de Café.
Para a médica veterinária e consultora do Sindicato da Indústria de Laticínios do RS (Sindilat-RS) Letícia de Albuquerque Vieira, o crescimento do consumo de produtos à base de soro se explica por questões econômicas e tecnológicas.
Segundo ela, esses ingredientes são aproveitados pela indústria como alternativas viáveis que agregam valor e cumprem com padrões estabelecidos pelas normas técnicas brasileiras. “A intenção nunca foi baratear, mas aproveitar ingredientes com riquíssimos elementos nutricionais, como o soro.”
Ela destaca que existe um erro comum por parte do consumidor, que é confundir produtos semelhantes, porém, pertencentes a categorias diferentes. “É o caso da bebida láctea fermentada, que se parece com o iogurte, mas não é. O iogurte é feito apenas com leite. Já a bebida pode conter leite e soro, e isso precisa estar claro na embalagem.”
Apesar de os alimentos à base de soro de leite ou gordura vegetal poderem parecer inferiores, Letícia faz questão de esclarecer que, em muitos casos, há vantagens nutricionais. “O soro de leite é riquíssimo em aminoácidos e tem digestibilidade melhor do que a proteína do leite. Antigamente, esse ingrediente era descartado. Hoje, graças à tecnologia, ele é aproveitado com ganho nutricional”, afirma.
Letícia admite que a semelhança entre as embalagens contribui para a confusão, mas ressalta que as empresas devem seguir normas rígidas. “Todos os produtos têm um Regulamento Técnico de Identidade e Qualidade, com critérios definidos pelo Ministério da Agricultura. Nada é criado fora desses parâmetros.”
Segundo ela, a rotulagem vem sendo aprimorada para melhorar a comunicação com o consumidor. “A famosa lupa de advertência da Anvisa sobre excesso de sódio e açúcar é uma dessas estratégias. O consumidor precisa ter o maior número de informações para entender o que está comprando”, pontua.
Ela afirma que, para o setor, a clareza na rotulagem dos produtos representa um ganho, deixando o consumidor atento também a produtos como queijo e carne. “Nós apoiamos (que os rótulos sejam mais claros) de todas as formas. Principalmente porque, com essas informações, não serão confundidos produtos de origem vegetal com animal, como o queijo que não vai leite e a carne de soja. Isso é um benefício para a cadeia e para o consumidor.”
nômica e da possibilidade de confundir os consumidores, o crescimento da venda destes alimentos também tem gerado preocupação do ponto de vista nutricional. A professora do curso de Nutrição da Universidade Feevale Mariana Ermel Córdova acompanha de perto o impacto que os chamados “alimentos fake” têm gerado na alimentação dos brasileiros.
Para ela, o principal problema está na forma como esses produtos substituem os ingredientes tradicionais por versões mais baratas, mas também mais ultraprocessadas. “Esses alimentos acabam contendo grandes quantidades de aditivos químicos, corantes, aromatizantes e emulsificantes. Para realçar o paladar, usam ainda mais sódio, açúcar e gordura de baixa qualidade, como a gordura hidrogenada”, explica.
Segundo a especialista, a troca de um alimento integral ou minimamente processado por uma versão que apenas o imita pode comprometer o perfil nutricional da dieta. “Por exemplo, um produto sabor leite não terá o mesmo teor de cálcio que o leite de verdade. Isso pode acabar favorecendo o desenvolvimento de alguma doença”, diz.
No caso dos laticínios, Mariana explica que a substituição da gordura láctea e das proteínas do leite – como o whey – por soro de leite, amido modificado e gordura vegetal pode alterar completamente o impacto do alimento no organismo. “Esses ingredientes são utilizados por serem mais baratos, mas afetam tanto a qualidade quanto a densidade calórica do produto.”
A longo prazo, segundo ela, a dieta baseada em versões alternativas pode ser mais calórica e menos nutritiva, gerando impactos prejudiciais à saúde. “Essas alterações vão comprometer a qualidade da dieta do paciente, fazendo com que a oferta de alguns nutrientes essenciais fique reduzida e acabe aumentando o teor de nutrientes que são mais inflamatórios para o paciente.”
Sobre a legalidade desses produtos, a professora reforça que a legislação permite a comercialização de alimentos “à base de”, “sabor de” ou “tipo”, desde que devidamente rotulados. No entanto, ela vê com preocupação a forma como as embalagens são desenhadas para se assemelhar aos alimentos originais. “Existe a questão do neuromarketing, que se usa muito nas embalagens. Acaba sendo extremamente apelativo, enquanto as informações ficam em letras pequenas. Isso induz, de fato, o consumidor ao erro. Especialmente aqueles com menor conhecimento sobre como é que se faz uma leitura de rótulo.”
Essa estratégia, segundo Mariana, se torna mais preocupante quando afeta grupos mais vulneráveis da população. “Qualquer ingestão alimentar irregular ou de alimentos ultraprocessados, ricos em aditivos químicos, açúcar ou gordura, é mais nociva a crianças, idosos, gestantes, pessoas com imunidade baixa e pacientes oncológicos.”
Para reduzir os riscos, a nutricionista defende a educação nutricional como ferramenta essencial. “Infelizmente, nossa população ainda carece de uma educação nutricional. A leitura do rótulo deveria ser uma coisa mais estimulada, mais ensinada, ou mais facilmente percebida pelos consumidores”, ressalta.
Ela recomenda atenção à lista de ingredientes, preferindo produtos com menos componentes e nomes mais familiares. “Quanto menor e mais conhecida for a lista de ingredientes, melhor. Alimentos com muitos aditivos, espessantes, aromatizantes e emulsificantes mostram que se trata de um alimento ultraprocessado.”
Mariana lembra ainda que a ordem dos ingredientes na embalagem também revela informações importantes. “A lista é organizada do item que tem mais quantidade para o que tem menos. Se um produto sabor café só menciona o café por último, isso quer dizer que ele está ali em menor quantidade”, orienta.
Em relação a produtos como mel, café, leite e requeijão, a professora recomenda verificar a presença de selos de qualidade e procedência. “Isso também ajuda a evitar qualquer produto que esteja alterado, mas, com certeza, a leitura do rótulo é o caminho para isso”, conclui.
Diante do cenário de crescimento da comercialização, o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) está atento. Embora não tenha ocorrido, ainda, nenhuma notificação sobre a prática enganosa em Porto Alegre, o órgão disponibiliza seus canais de atendimento para eventuais denúncias.
Conforme o diretor do Procon da Capital, Wambert Di Lorenzo, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) é claro ao afirmar que toda informação sobre produtos deve ser clara, precisa e não pode induzir o consumidor ao erro. “Quando uma empresa utiliza uma embalagem visualmente parecida com a de outra marca já conhecida no mercado, mesmo que a composição seja diferente, isso pode configurar prática abusiva”, explica.
Ele cita o artigo 37 do CDC, que considera enganosa qualquer forma de comunicação que possa confundir o consumidor quanto às características, origem ou qualidade do produto.
Para o diretor, quando a apresentação do produto induz o consumidor a pensar que está adquirindo um item de determinada marca, mas na verdade trata-se de outro produto — geralmente de qualidade ou composição inferior —, trata-se de uma publicidade enganosa por apresentação, conforme previsto no próprio CDC. “O consumidor, nesse caso, é levado ao erro não pela ausência de informação, mas pela forma como o produto é visualmente apresentado”, detalha Di Lorenzo.
O consumidor que não quer ser confundido e lesado precisa ter cuidado ao escolher os produtos. “A melhor forma de se proteger é estar atento. Antes de colocar o produto no carrinho, o consumidor deve observar com atenção o nome da marca, a composição e o fabricante, além de desconfiar de preços muito abaixo da média”, diz o diretor.
Ele acrescenta que o fato de as embalagens serem parecidas não significa, necessariamente, que os produtos são equivalentes. “Por isso é importante redobrar o cuidado, principalmente em compras rápidas ou automáticas”, conclui.