Governo Lula ameaça taxar empresas de tecnologia em resposta ao tarifaço de Trump, mas elas oferecem serviços que vão além das redes e sites de compras.
Como ficaria o Brasil sem os serviços de Apple, Google, Meta e Amazon? Entenda se rompimento seria viável
Governo Lula ameaça taxar empresas de tecnologia em resposta ao tarifaço de Trump, mas elas oferecem serviços que vão além das redes e sites de compras
Segundo um estudo da Comscore, o Brasil tem 116 milhões de usuários digitais ativos e 86% da população faz uso de redes sociais, seja para lazer, trabalho ou conexão com familiares e conhecidos. Isso torna as big techs conhecidas principalmente por plataformas como Instagram, Facebook, Gmail, WhatsApp. No entanto, esses serviços são apenas a vitrine de uma operação muito mais intrínseca.
A Amazon, por exemplo, é uma das maiores provedoras de serviço de nuvem do País, com a AWS, o que significa que muitas empresas têm seus sistemas corporativos inteiramente dependentes dessa aplicação. Já o Google, além do Gmail, que está tanto em empresas quanto em contas pessoais, é o dono do Android, sistema operacional que está na grande parte dos celulares brasileiros.
O cenário de um País sem a atuação das gigantes não é impossível, mas extremamente improvável, de acordo com Guilherme Klafke, professor de Direito na Fundação Getulio Vargas (FGV). Além das plataformas de rede social, que hoje estão enraizadas na cultura e na sociedade brasileira, as grandes empresas de tecnologia são provedoras de serviços essenciais para o funcionamento da internet no Brasil, como data centers e operação em nuvem.
“A gente imagina as big techs numa ideia de redes sociais, mas a internet é um ecossistema muito grande. Pensar um cenário alternativo envolveria deslocar isso para um outro tipo de empresa grande capaz de prestar esses serviços”, explica Klafke.
O cenário de dependência se desenrolou ao longo de anos por três motivos: primeiro, a forma como a internet cresceu no Brasil. Por aqui, as plataformas americanas ganharam força desde o início da conexão da web, sem concorrentes nacionais significativos para seus principais serviços: e-commerce, redes sociais e comunicação online.
Assim, toda a cadeia de uso foi desenvolvida dentro e com a presença dessas empresas – diferente do que acontece na China, por exemplo, que construiu bases nacionais para todas essas plataformas desde o início de seu acesso à internet. Hoje, o país tem suas próprias versões de mensageiros, varejistas online, redes sociais e serviços em cloud, bloqueando a presença de aplicações ocidentais.
O segundo ponto é que, dada a popularização e uso extremo desses produtos, é muito difícil que o Brasil consiga sustentar a perda dessas plataformas, mesmo com alternativas adotadas de outros países. Uma migração levaria tempo e acarretaria em prejuízo financeiro para diversos setores que usam as plataformas americanas – um pequeno exemplo de como diversas estruturas seriam afetadas aconteceu em outubro de 2021, quando o WhatsApp ficou cerca de sete horas sem funcionar no País. Na ocasião, milhares de empreendedores que utilizavam a ferramenta para negócios ficaram sem comunicação com seus clientes.
Ainda, a diversidade de estruturas que permitem que a internet funcione no Brasil tornaria o rompimento com essas empresas bastante difícil. Hoje, o Brasil conta com mais de 20 mil provedores de internet diferentes, com cerca de 23 milhões de pontos de acessos, o que significaria uma fiscalização em larga escala e um possível atrito com o setor de telecomunicações, segundo Klafke. Além disso, o País tem déficit no uso de data centers. Estima-se que cerca de 60% das informações processadas no País são feitas por servidores estrangeiros, um cenário que o governo tenta atenuar por meio do Redata, plano do Ministério da Fazenda que visa atrair investimento estrangeiro de até R$ 2 trilhões na construção de data centers em território nacional.
A interrupção desses serviços também poderia acarretar o isolamento internacional, como é o caso da Rússia. Inicialmente, o país tinha a presença de empresas ocidentais, mas o governo de Vladimir Putin decidiu turbinar plataformas nacionais, também em resposta a sanções, principalmente dos EUA. O resultado é uma internet extremamente fechada para a população, que tem pouco acesso à sites e serviços online vindos de fora do país – no início da guerra contra a Ucrânia, por exemplo, muitos usuários burlavam as plataformas utilizando VPNs.
“Imaginar um cenário como a Rússia é imaginar um cenário de pária internacional, em que você tem uma restrição enorme no uso e na variedade de serviços. Não é desejável pensar na internet desse jeito, porque aí você paralisa a inovação, paralisa a comunicação e o povo brasileiro tem um uso da internet muito específico”, aponta Klafke.
Mercado que interessa
Para as big techs, também não é interessante perder o Brasil como mercado. O País é um dos maiores consumidores dos produtos dessas empresas, além de ter uma população extremamente digital. De acordo com uma pesquisa da Bain & Company, o brasileiro passa mais de 9 horas por dia online, um número acima da média global. No total, o Brasil é o segundo país do mundo que mais gasta tempo na internet. Para as gigantes de tecnologia, esse tempo é exposição – e exposição é receita no bolso.
“O Brasil é um mercado relevante e o País só ganha protagonismo na luta (com as empresas) porque tem uma internet vibrante, um mercado relevante. O País consegue, pelo peso do mercado consumidor, ter um um foco relevante para essas empresas. Então, para elas também não é interessante perder o Brasil”, explica Klafke.
Na visão dos especialistas, isso gera um certo poder de barganha para o governo na disputa com Trump. O histórico do enfrentamento dessas companhias, como no caso da decisão do Supremo Tribunal Federal com o Twitter, no caso que levou a rede social a ficar suspensa no Brasil por mais de 30 dias, também mostra a disposição em levar a ameaça das tarifas adiante, por exemplo.
Para a professora de relações internacionais da Universidade de Santa Catarina (UFSC) Camila Vidal, mesmo em um cenário hipotético, imaginar o País sem os serviços das gigantes de tecnologia é praticamente impossível, mas a regulação dos serviços é factível e deve ser feita para controlar a influência que as big techs possam ter sobre a sociedade.
“A questão a ser posta é de que forma que a gente pode e deve regular essas big techs. Isso é uma questão que está sendo debatida já há bastante tempo”, afirma Camila.
Além das tarifas que o governo ameaça impor às big techs, a discussão da regulação dessas empresas aumentou após o julgamento que alterou o artigo 19 do Marco Civil da Internet, que pressiona a responsabilização das redes sociais em caso de publicações ilegais. Para o Brasil, essa também é uma carta na manga na negociação com Trump.
“Eu acho que o caminho no Brasil precisa ser esse, de como a gente precisa urgentemente regular e não banir ou viver sem elas”, aponta Camila. “A regulação é necessária e acho que é a hora de fazermos isso”.
Fonte, redação e imagem: Estadão 27/07/2025.