Evangélicos se radicalizam para disputar monopólio da moralidade com progressistas - Agora Já -

Evangélicos se radicalizam para disputar monopólio da moralidade com progressistas



Avanço de pautas de esquerda cria moral pagã e gera batalha por influência e poder

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30 de janeiro de 2023

A adesão de evangélicos à direita radical é uma resposta à ascensão da moral pagã, que ganhou espaço no imaginário e na atuação da esquerda com pautas progressistas que determinam o que é certo e errado dos pontos de vistas social, político, ético e estético. O monopólio da moralidade, antes religioso, está em disputa pelos dois grupos. O que está em jogo é a construção de valores simbólicos que balizam comportamentos, além de influência política, já que o controle dessas regras é uma fonte primária de poder.

Nacionalidade ou identidade são atributos com diversos pontos comuns, dos quais nem sempre se escapa. Não é possível se assumir brasileiro não praticante, mas há meios de aceitar ou recusar certas orientações.

Eu, por exemplo, sou descendente de quatro gerações de calvinistas, mas me declaro presbiteriano não praticante, agnóstico não militante. Antes dos meus avós, já existia a tradição presbiteriana de tomar nota sobre os sermões. Não faz muito tempo, escondido, consegui olhar alguns dos muitos cadernos da minha mãe com centenas dessas anotações e nele reforcei uma suspeita: o assunto mais frequente das pregações não era o amor ao próximo ou o perdão de Jesus, mas o pecado dos homens e a justiça de Deus.

 

Bolsonarista reza em frente ao batalhão da Polícia Militar durante protestos de 8 de janeiro – Antonio Cascio/Reuters

Ao sentir surpresa, me percebi ingênuo e decidi pensar mais sobre o tema, tomando por objeto a racionalidade majoritária dos evangélicos e supondo encontrar respostas sobre o comportamento contraditório que adotaram recentemente.

Acredito não haver qualquer dissonância cognitiva na adesão evangélica à direita mais radical. Suponho que o estranhamento pela contradição entre uma mensagem de amor cristã e a paixão pelas políticas tóxicas dos últimos anos ocorre porque tentamos enxergar a questão tomando o amor como força maior da religião, não o poder.

Em outras palavras, queremos entender os comportamentos radicais desse grupo por meio das palavras de Cristo quando deveríamos reconsiderar as de Maquiavel, para quem o poder é a bênção suprema, e o medo, muito mais eloquente que o amor. A defesa do governo Bolsonaro pela maioria dos evangélicos tem a ver com a ameaça de perda de um suposto monopólio da moralidade, que, apesar de nunca ter sido hegemônico, conferia a esse grupo alguma atratividade e distinção social.

Não ignoro a discussão existente sobre o papel socioeconômico dessas igrejas, seja como fonte de bem-estar social, seja como ethos de ação no mundo do trabalho ou ainda como recurso de acolhimento e pertencimento social.

Em comum com Juliano Spver, autor do recomendado “O Povo de Deus” (Geração Editorial, 284 págs., R$ 49,90), defendo a recusa da ideia de que os evangélicos são irracionais, contraditórios ou desinteligentes. Se isso os acomete, de forma alguma é em medida superior a quaisquer outros grupos que buscam uma maneira própria de descrever o mundo.

 

Bolsonaro e os evangélicos

 

Se pensarmos bem, a suposta irracionalidade da fé é, paradoxalmente, um dos pontos mais cartesianos da nossa humanidade. Ela representa melhor que qualquer outra ideia a capacidade de refletir sobre nossa própria existência. Existimos porque pensamos. Se não é racional acreditar na arca de Noé, que nome daríamos à capacidade humana de cogitar um mundo com uma história dessa?

A fé, mais que qualquer outra abstração, é capaz de transformar a angústia humana em redenção, subvertendo o medo da morte em esperança de vida eterna. Para dimensionar isso, basta comparar o afeto das respostas da ciência e da religião para as três perguntas mais existenciais que conhecemos: de onde vim, qual é o sentido de eu estar aqui e para onde vou.

Enquanto a ciência apresenta respostas impessoais, falando em explosões cósmicas, niilismo metodológico e um futuro de esquecimento e vazio, a religião oferece uma origem divina, um destino redentor transcendental e uma razão para viver.

Pela fé, fomos criados à imagem e semelhança de Deus e descendemos de Adão e Eva, que experimentaram o Éden. Nossa vida serve ao propósito de peregrinação, em que, se formos obedientes aos mandamentos originais, ganharemos a dádiva da vida eterna e o retorno a esse paraíso. Porém, se formos indignos por alguma razão, padeceremos eternamente em um inferno de dores e aflições.

Nisso, temos uma razão existencial, amparada na esperança de superação do pecado e da morte, que nos incentiva a acertar os passos e conquistar ou merecer a melhor sorte. Nas versões calvinistas, nos mobilizaria a querer pertencer ao rol de eleitos.

 

Marcha para Jesus, reúne multidão e candidatos em São Paulo

Monopolizar essa esperança e sua contrapartida dialética em medo é uma consagrada fonte de poder político. Definir as regras de acesso a essa transcendência boa ou má constitui o poder das religiões. Podemos chamar isso de moral religiosa, mas, para nosso argumento ficar mais completo, precisamos olhar com um pouco mais de cuidado a origem da moral cristã.

Jesus Cristo estabeleceu uma nova religião ao sintetizar antigos ensinamentos judaicos em um mandamento único: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Trata-se de uma forma simples de vida, reduzindo as possibilidades de malfeitos, desde que o indivíduo oriente suas ações no amor a Deus e ao próximo, reconhecendo qualquer próximo com um igual.

Seu destino, no entanto, foi trágico. Ao levar adiante essa ideia, foi considerado um herege por seus conterrâneos teólogos, que exigiram sua crucificação. Sua mensagem, porém, foi absorvida pelos gentios que aclamaram Jesus como mestre divino. Seus milagres, incluindo sua ressurreição, consagraram-no como o filho de Deus, tornando-o o humano mais extraordinário de todos os tempos, ao menos no Ocidente. Mas, nas tragédias, o herói morre, e o sentido e a forma dessa morte tem a ver com a moral de que falamos.

Muitos povos clássicos da Antiguidade, inclusive os judeus, ofertavam tradicionalmente a seus deuses animais imaculados como sacrifício sagrado. O propósito era o perdão de pecados e súplicas de boa sorte na terra. O martírio de Jesus reproduz essa tradição em uma escala divina. Deus, conhecedor da corruptibilidade humana em livre arbítrio, cria, expõe ao mundo e sacrifica seu filho único, que, apesar de todas as tentações, angústias e aflições, morre puro, simbolizando com isso a possibilidade de remissão eterna de todos os pecados de todos os impuros.

Instantes após essa morte, alguns dos apóstolos, talvez imbuídos das melhores intenções, decidiram “ajustar” o trabalho de Deus, propondo critérios avaliativos sobre quem, como, quando e por que alguns humanos seriam mais ou menos dignos desse sacrifício. Sem saber, suponho, esses apóstolos estavam criando a moral cristã.

 

  • O então presidente Jair Bolsonaro ao lado de convidados do culto de aniversario do pastor Silas Malafaia, em sua igreja no Rio de Janeiro – Zô Guimarães/UOL

Em pouco tempo, isso se transformou em um monopólio que conferia a alguns crentes o direito de dizer a todos os demais o que seria certo e errado, sob penas que incluíam pequenas penitências, excomunhão e a danação eterna. Os protestantes, diga-se, são mais brandos com as penitências, mas compensam isso com muita renúncia e vigilância preventiva —esse é um dado importante em nosso raciocínio.

Em alguns séculos, esse monopólio assumiu distintas teologias, antagonizando dogmas, mas se mantendo inabalável sobre a prerrogativa de sacramentar o certo e o errado. Se considerarmos válido que a vida social demanda algum ordenamento, temos que o controle dessas regras é uma fonte primária de poder político. Desde que temos registros, coube aos religiosos controlar todas ou quase todas essas regras. Se alguém tem dúvidas, basta dar uma lida em qualquer Constituição.

Por diversas razões, essa força eclesiástica encontrou uma concorrente pagã. Não faz muito tempo, progressistas de todo o mundo deram corpo e voz a reivindicações mundanas contrárias a machismo, misoginia, racismo, xenofobia, sexismo e homofobia, ao mesmo tempo que propagaram apoio a causas ambientalistas, a flexibilização das possibilidades de aborto ou da eutanásia, e endureceram o discurso contra o armamentismo, a pena de morte, empoderando essas e outras pautas rotuladas de identitárias.

Por serem demandas sociais óbvias, as repercussões explodiram. O crescimento dos movimentos feministas, a desassociação estética de potência com símbolos fálicos, a desconstrução do modelo católico patriarcal de família e até mesmo as revisões profundas dos mitos e heróis fundadores são alguns dos variados e disponíveis exemplos.

Por razões boas e ruins, discutidas com muito cuidado por Mark Lilla em “Progressista de Ontem e do Amanhã”, a relevância que essas pautas assumiram, tanto no imaginário quanto nas ações das esquerdas, tem sido tão grande que, pouco a pouco, elas vão se consolidando como uma nova moralidade pagã. Para o bem ou para o mal, essa nova agenda vem ampliando seu poder de determinar, para além de seu grupo, o que é o certo e o errado dos pontos de vistas social, político, ético e estético, submetendo alguns desavisados a retratações públicas, processos judiciais, revisões de suas narrativas simbólicas, sob penas que variam de cancelamentos a marginalização política sumárias de indivíduos ou grupos.

Chegamos, portanto, a um momento incomum da nossa história social, onde coexistem duas moralidades rivais, uma sagrada e outra pagã. Em disputa estaria a construção dos valores simbólicos balizadores dos comportamentos sociais, éticos e estéticos e, por consequência, uma acirrada disputa por influência política.

 

Bolsonaro e os pastores.

 

E é nesse ponto que a racionalidade institucional dos evangélicos se mostra coerente com Maquiavel, pois é perfeitamente racional esperar que humanos se unam a fim de afastar de si tudo aquilo que supõem como ameaças. Nesse caso, querer o fim de ideias contrárias às que defendem, como o feminismo, a flexibilização do aborto ou ações LGBTQIA+, soa como estratégia pragmática e racional para a manutenção do rebanho. Isso explicaria, por exemplo, a estranha união entre presbiterianos, assembleianos, batistas ou metodistas tradicionais, com as Igrejas Universais do Reino de Deus, Mundial do Reino de Deus, Renascer em Cristo e outras franquias evangélicas. Unidas, essas doutrinas incompatíveis apoiaram o falso testemunho, o armamentismo, o curandeirismo, o ódio e a devastação da natureza.

Como já sugeria o caderninho da minha mãe, o que está em jogo nunca foi a propagação do amor, mas um suposto direito de dizer como, quando, por que e a quem, ele deve ser oferecido.

Fonte: Folha de São Paulo: Sillas de Souza Cezar – Economista e doutor em educação pela Unicamp

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